quarta-feira, outubro 17, 2007

Densidade e Superfície

Um dos conteúdos que trabalho na faculdade é a esterilização de material cirúrgico.
Ensino para os alunos que existem materiais de densidade ( campos cirúrgicos, aventais, compressas, gases, ataduras) que devem ser esterilizados em separado dos materiais de superfície (pinças e demais instrumentais de inóx). Explico que materiais de densidades, por terem suas fibras permeáveis e portanto permitem que os microrganismos penetrem no seu interior, precisam de um tempo maior de exposição ao agente esterilizante, para que esse consiga penetrar em todas as fibras. Já os artigos de superfície, em que os microrganismos não conseguem adentrar, precisam de tempo menor.
O que tenho vivido nos últimos tempos me permite pensar que, da mesma forma que os artigos hospitalares, existem pessoas de superfície e pessoas de densidade. Explico:
Eu, por exemplo, sou obviamente uma pessoa de densidade. Eu permito que os sentimentos (todos) penetrem nas minhas fibras, nas minhas células. Eu preciso gostar e ser gostada. Eu não consigo ficar de mal com alguém. Eu não suporto que pessoas fiquem bravas comigo. Não consigo ligar o "foda-se e seja feliz". Portanto, eu sinto mais, eu amo mais, eu me magoo mais, eu sofro mais. Mas também vivo mais plenamente minhas relações. Eu permito que as pessoas se sintam com liberdade de me abraçar, de me beijar, de me dar colo. Não tenho medo de parecer vulnerável.
Já as pessoas de superfície são intocáveis, ou demonstram uma impermeabilidade. Não conseguimos nos aproximar. As relações se mantém no exterior. Não dão espaço para entrar em seus sentimentos, em seus corações. E se tentamos, nos afastam, nos segregam. Às vezes são grandes amigos, nos ajudam. Desde que essa ajuda seja de ordem prática, não de ordem sentimental. Não podemos invadir seus espaços, sua individualidade. Dessa forma, acredito que sofram menos, se magoem menos, mas também amam menos, recebem menos em troca.
Sei que os que nos torna de pessoas de superfície ou de densidade é toda a bagagem que carregamos desde o momento de nossa concepção. Depende da nossa cultura, dos nossos valores, da forma como somos criados, da afetividade do nosso núcleo familiar, das relações que temos e estabelecemos.
Ah, esqueci de dizer que ensino que não se mistura, em um mesmo ciclo de esterilização, materiais de densidade com materiais de superfície, por motivos óbvios. E também acho que pessoas de densidade não devem misturar-se com pessoas de superfície.
Mas sei também que pudemos mudar. As pessoas de densidade podem se tornar mais duras, criar uma crosta de impermeabilidade para se proteger. As de superfície podem desgastar um pouco o aço, podem amolecer, podem ser mais permeáveis. Depende de nossa vontade, de nossa motivação, de um trabalho emocional grande e que demanda esforço.
Eu estou trabalhando para endurecer um pouco. Não que eu queira ser uma pessoa de superfície. Nunca serei de aço inóx. Mas posso me tornar pelo menos um alumínio. Pelo menos para me relacionar com as pessoas de superfície e assim me proteger de sua impermeabilidade. Com as pessoas de densidade, continuarei ser de densidade.
Portanto, quero endurecer. Mas perder a ternura, jamais.

8 comentários:

Márcio Neves disse...

Ah...vem aqui e me dá um abraço!

Priscila disse...

Belíssimo texto, Mô, parabéns!!!

Anônimo disse...

tem uma bela campanha inglesa, superpremiada, que fala sobre percepção e realidade. às vezes, as pessoas de densidade são na verdade as de superfície, e vice-versa. tudo depende de como as vemos ou de como querem que nos vejam. acho que não somos sempre os mesmos.
por exemplo: eu sei que tu é um doce de pessoa, eu sei que tu tem sentimentos profundos e muita sensibilidade. mas, quem te conhece ao vivo, não nota tanta fragilidade, porque tu só passa segurança e firmeza e as vezes até uma certa dureza. e, outra: tudo é uma questão de expectativas. as vezes, tu (tu no sentido de qualquer um de nós e não tu mônica) acha uma coisa, supõe que o mundo está contra ti, quando na verdade o mundo só está cheio de trabalho, sem tempo, ocupado. minha mãe sempre diz: tu tá com a consciencia limpa? tu sabe que nao fez nada errado? então relaxa que o problema não é tu.

eu, não sei se sou bisturi ou avental. mas acho que com soda cáustica dá pra me esterilizar.

bah. escrevi além da conta.

belo texto sim, mônica.

Mônica disse...

márcio, quando eu for te dou o abraço. :*
obrigada Pri.
Dani, concordo contigo. Acho que de novo é aquele jogo de como nos vemos, como achamos que os outros nos vêem e como realmente somos vistos. E quanto a mim, esse aparência de dureza, segurança e firmeza vem da minha casquinha de aluminio que tem sido construída nos seis anos de terapia.

Kelen disse...

Entrei aqui pra falar, com palavras menos bonitas, exatamente o que a Dani escreveu ali em cima, e ia complementar dizendo que é exatamente aquela história que tu vem dizendo de como mos vemos, como os outros nos vêem e como realmente somos, como tu escrevu aqui em cima. E pra completar, tinha acabado de ecsrever sobre isso lá no blog da Pri Que coisa hein? E já que só copiei todo mundo, assino embaixo da Pri e Dani: belo texto. Se esse tivesse brinde eu ganhava, a leitura não foi dinâmica.

Mônica disse...

te dou um brinde na próxima vez, kelen.

Anônimo disse...

Entendo o que quer dizer, mas acho que uma pessoa pode ser dois tipos ao mesmo tempo. Por exemplo, eu. Sempre fui de densidade, mas com certos acontecimentos, aprendi que em certos momentos temos que nos fazer de superfície pra enfrentar certos problemas sem cair e sem sofrer demais. Dessa maneira, aprendemos mais com eles, por olharmos mais friamente. Acho que uma comparação boa tb é a relação dos pais com os filhos. O pai ou mãe não podem ser de um só tipo, mas sim balancear. Enfim, concordo que é melhor ser de densidade, mas ter um alumínio guardado de reserva é sempre bom. :)
Você escreve muito bem, parabéns!

Mônica disse...

Obrigada Tititi. To construindo minha capinha de alumíno. Bjs